sábado, 26 de setembro de 2009

Adaptação e o egoísmo


Charlie Kaufman fez o maior pesadelo metalingüístico de todos os tempos. Um filme dentro de um filme de uma maneira inimaginável. E quase ninguém lembra desse filme, desse marco na carreira de todos envolvidos. E eu fico feliz com isso.


O filme do qual eu falo é Adaptação, lançado nos EUA em 2002, e como o propósito dessa coluna é fazer você ver filmes que deveria ver, caso não tenha visto, pare tudo o que você está fazendo e vá assistir.



Ou continue lendo.

Entregaram para o gênio dos roteiros, Charlie Kaufman, notório depois de Quero Ser John Malkovich, um best seller para que ele adaptasse. E ao falhar na missão de adaptar a história do livro, ele desenvolveu a história de um roteirista que não consegue adaptar esse mesmo best seller. E num dos passos criativos mais originais do cinema dos últimos tempos, inseriu a si mesmo no filme. Ele mesmo é o personagem principal, ele e todos os seus medos, inseguranças, incertezas, desistências e fraquezas. E ainda inventou um irmão gêmeo gentil e amoroso, que é tudo o que ele não é.

Kaufman ganharia o Oscar anos depois por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, mas por este aqui também foi indicado, junto com seu fictício irmão, Donald Kaufman, também creditado como roteirista. Este é um trabalho extremamente mais pessoal do que Brilho Eterno, aliás, possivelmente o roteiro mais pessoal jamais escrito. Ao expor suas angústias na tela, Kaufman se transforma num herói melancólico, que não consegue sair de sua prisão. Cria uma identidade fantástica com qualquer um que assiste, qualquer um que já se sentiu frustrado alguma vez na vida. E Kaufman não é o único talento responsável por isso. Há outros dois grandes responsáveis pelo filme funcionar.

Nicholas Cage, numa de suas últimas grandes atuações antes de entrar em um rodamoinho de péssimas produções, entrega sua alma e sua vontade na caricatura de Charlie Kaufman, tudo nas mãos de um dos grandes diretores dos últimos anos, Spike Jonze. E é a química entre essas duas forças que conduzem o filme do monólogo inicial ao final. Cage liberou-se de qualquer instinto próprio e decidiu deixar toda e qualquer decisão de atuação nas mãos de Jonze, e ambos criaram um personagem fabuloso. Que eu me lembre, só vi novamente essa paixão e esse cuidado nos olhos de Cage em Senhor Das Armas, e em mais nada. Assistir Adaptação faz você imaginar pra onde foi todo o talento de Cage, ou se ele simplesmente precisa pagar muitas contas.

Kaufman precisa escrever um roteiro sobre a vida de um contrabandista de flores, um caipira imponente interpretado pelo vencedor do Oscar pelo papel, Chris Cooper, e começa então a investigar a relação entre ele e a autora do best seller, interpretada por Meryll Streep, que aqui foge de clichês, e entrega outra atuação orgânica, de alguém que também precisa se libertar de sua própria prisão.

Uma das piadas internas que ele faz sobre o mundo do cinema é sobre a originalidade. Sobre o uso de clichês, sobre a falta de criatividade na hora de Hollywood criar histórias. E ao invés de se livrar de voice overs e Deus Ex Machina, ele as utiliza astutamente. Praticamente uma fanfarronice intrínsica, já que o próprio personagem é decidido a não usar tais recursos em sua história. O personagem interpretado por Brian Cox é o grande ponto para entender essa crítica a Hollywood. O cinema perdeu grande parte de sua criatividade, e ao invés de fazer coisas originais, cai em refilmagens ou adaptações (!!). O professor de roteiro que Cox interpreta mostra que Hollywood está sim lotado de clichês, mas isso não quer dizer que eles precisam ser usados de maneira tola.

Auto-referências, metalinguagem ao extremo, pequenos presentes de inteligência pela história toda. Esse é um filme tão belo, tão fresco, tão original que me deixa alegre ver que ele não é tão famoso. Um egoísmo tolo, de algo que poucos conhecem. Fico imaginando se ele fosse ganhador de algum prêmio mundial, o Oscar de melhor filme, e aí acabasse na boca do povo, a exemplo do excelente Quem Quer Ser Um Milionário, que iniciou um estúpido fascínio da sociedade pela cultura que retrata. É um filme muito cabeça, muito denso para todo mundo gostar, e gosto inclusive disso. Mas é pelo bem das mentes e dos corações que devo deixar de lado este estúpido sentimento de “é só meu”. É um filme precioso, e o ideal é que seja visto e apreciado por muitos.

Um comentário:

Rafael Castellar das Neves disse...

Boa dica!! Locadora amanhã, ou será que esse não é facilmente encontrado? Vamos ver!

Abraços...